Pesquisadores explicam como treinamento aeróbico e de resistência muscular reverte danos decorrentes da insuficiência cardíaca.
Mário Pedro Bernardes é um homem grande e forte. Com 1,90 metro de altura, sempre esteve habituado a executar tarefas que exigiam força física. Foi cinegrafista de uma rede de TV durante anos e, nas reportagens, carregava uma câmera de 7 quilos nos ombros. Mas em 2012, aos 47 anos, ele teve de se aposentar. Mário fez um exame para participar como voluntário saudável de um estudo e descobriu que seu coração não andava bem. Uma infecção por vírus, provavelmente antiga, havia causado lesões no músculo cardíaco e o órgão já não bombeava mais o sangue como deveria. Ele havia desenvolvido insuficiência cardíaca, um problema complexo que reduz a capacidade do coração de distribuir o sangue pelo corpo e é uma das principais causas de morte no Brasil.
Um infarto ocorrido meses mais tarde deixou Mário internado por uma semana em uma UTI e agravou o quadro. Ao receber alta, foi aposentado por invalidez e seu cardiologista à época recomendou que não fizesse atividade física. Deveria tomar os medicamentos para auxiliar o funcionamento do coração e poderia, no máximo, realizar “caminhadas leves”. Mas nem isso ele conseguia. “Eu andava um quarteirão e tinha de parar para descansar; se eu falasse, cansava antes disso”, contou Mário em uma manhã de novembro deste ano, logo após uma sessão de treino em que pedalou por 40 minutos uma bicicleta ergométrica em um dos laboratórios do Instituto do Coração (InCor) da Universidade de São Paulo (USP).
Mário é um dos quase 150 voluntários que nos últimos anos passaram por um programa de treinamento no InCor destinado a avaliar o efeito do exercício físico sobre a saúde de pessoas com insuficiência cardíaca. Dirigido pelo fisiologista Carlos Eduardo Negrão, o programa vem ajudando a demonstrar que, ao lado do uso de medicamentos, a prática regular de exercício físico é fundamental para restaurar a saúde de quem está com o coração doente. “Das pessoas que participaram do treinamento, a grande maioria melhorou”, conta a pesquisadora Lígia Antunes-Corrêa, integrante do grupo.
Só participa do programa quem se encontra em condição clínica estável, obtida com o auxílio de medicamentos. Os pesquisadores avaliam a capacidade cardiorrespiratória de cada indivíduo e preparam um plano progressivo de treino até que seja alcançado o nível desejado de exercício físico. A meta é realizar 40 minutos de exercício aeróbico e outros 20 de exercícios de resistência muscular e flexibilidade três vezes na semana. O treinamento dura quatro meses, tempo suficiente para começar a resgatar a qualidade de vida e a capacidade de desempenhar muitas das atividades diárias, como tomar banho sozinho ou fazer uma caminhada até o supermercado, perdidas com a insuficiência cardíaca.
“Depois que fiz o treinamento pela primeira vez, senti mais disposição”, disse Mário, que, agora aos 50 anos, participa de um segundo estudo conduzido pelo grupo de Negrão. Boa parte dessa disposição, porém, desapareceu quando Mário deixou de fazer exercício físico. “O efeito do exercício é perdido quando o treinamento é descontinuado”, explicou Lígia.
“A prática regular de exercício físico é mandatória para as pessoas com insuficiência cardíaca com controle clínico adequado”, afirma Negrão, diretor da Unidade de Reabilitação Cardiovascular e Fisiologia do Exercício do InCor. Desde fins dos anos 1990 ele e sua equipe vêm demonstrando que o exercício ajuda a estabilizar – e muitas vezes a reverter – as alterações que a insuficiência cardíaca provoca no organismo, funcionando de modo complementar aos medicamentos.
Nesses quase 20 anos, o trabalho de seu grupo, em paralelo ao de equipes na Europa e nos Estados Unidos, identificou algumas das modificações nos níveis bioquímico, celular e tecidual induzidas pelo exercício. São alterações que reequilibram o funcionamento dos sistemas muscular, vascular e endócrino e ajudam a explicar como o exercício físico praticado regularmente melhora o bem-estar de quem tem insuficiência cardíaca.
As evidências acumuladas nesse período levaram o exercício físico a ser incorporado às estratégias de tratamento da insuficiência cardíaca recomendadas pela Sociedade Brasileira de Cardiologia (SBC), pelo Colégio Americano de Cardiologia e pelo Colégio Americano de Medicina do Esporte. “Até os anos 1990, havia dúvidas sobre os benefícios dos exercícios e recomendava-se repouso”, conta Dirceu Rodrigues de Almeida, presidente do Departamento de Insuficiência Cardíaca da SBC e responsável pela Divisão de Insuficiência Cardíaca e Transplante Cardíaco da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). De lá para cá, muito disso mudou. “Ainda nos anos 1990 começaram a surgir evidências de que o exercício físico aumentava o bem-estar dos pacientes e na década seguinte passou-se a compreender como ele minimizava e, eventualmente, até revertia as alterações causadas pela insuficiência cardíaca.”
(mais…)